O conhecimento pode dar prazer. O
conhecimento pode dar sofrimento. Quando o conhecimento dá prazer a
gente quer conhecer cada vez mais. Quando o conhecimento dá sofrimento a
gente quer conhecer cada vez menos.
No início de sua metafísica
Aristóteles afirma que “todos os homens têm, naturalmente, um impulso
para adquirir conhecimento”. Isso é absolutamente verdadeiro em
relação ao conhecimento que dá prazer.
O prazer que Walt Whitman sentiu
ao entrar para a escola foi tão grande que ele lhe deu a forma de um
poema. “Ao começar meus estudos/ me agradou tanto o passo inicial,/ a
simples conscientização dos fatos,/ as formas, o poder de movimento, o
mais pequeno inseto ou animal, / os sentidos, o dom de ver, o amor/ – o
passo inicial, torno a dizer, / me assustou tanto, / e me agradou tanto,
/ que não foi fácil para mim passar / e não fácil seguir adiante, /
pois eu teria querido ficar ali / flanando o tempo todo, / cantando
aquilo / em cânticos extasiados.”
O conhecimento prazeroso é aquele que nos abre as janelas do mundo.
Como se a gente estivesse
viajando, e fosse vendo árvores, riachos, campos, vacas, cavalos,
pássaros, casas, caminhos, nuvens…Conhecimento prazeroso é aquele que
coloca diante de nós os cenários do mundo, que vão dos ovos num ninho de
beija-flor até galáxias a milhões de anos luz de distância.
Diante dos cenários que o
conhecimento nos abre os olhos e a alma ficam abobalhados de assombro.
Como os de Walt Whitman menino.
Muitos séculos depois de
Aristóteles, no final do século XVIII, o filósofo Emanuel Kant escreveu
um pequeno opúsculo com o título O que é o Iluminismo? em que ele faz
uma exortação que Aristóteles não entenderia. Ele diz “Sapere Aude”
-ouse saber! Mas como? Ninguém vai dizer “ouse olhar no microscópio!”,
ouse olhar no telescópio!” Olhar no microscópio e olhar no telescópio
são atos curiosos que atendem à nossa inclinação natural. Acontece que
Kant tinha consciência de um tipo de conhecimento diferente daquele a
que se referia Aristóteles. Ele sabia que há um conhecimento que não é
natural por exigir a virtude moral da ousadia. A ousadia é uma atitude
de contraria aquilo que é natural.
Ousadia implica coragem, fazer o
proibido, enfrentar o perigo, aceitar um desafio,. Dá medo escalar uma
montanha perigosa. O impulso natural é recuar . Mas Kant diz “ouse
conhecer!” O que separa esses dois tipos de conhecimento?
O conhecimento a que se referia
Aristóteles é o conhecimento das coisas que estão separadas do meu
corpo. Conhecimento que mora na cabeça. Albert Camus no seu livro O mito
de Sisífo, observa que Galileu, que possuia um conhecimento astronômico
da mais alta importância, quando se viu ameaçado pela Inquisição (as
igrejas cristãos sempre tiveram medo daqueles que conheciam o que elas
não conheciam), negou o seu conhecimento, voltou atrás, desdisse.
Covardia? Camus diz que Galileu
fez muito bem. Se o sol gira em torno da terra ou a terra gira em
torno do sol é matéria de profunda indiferença. Aquele conhecimento
não valia a fogueira. A vida vale mais. No entanto, ele continua, há
pessoas que são capazes de morrer e matar pelas idéias mais doidas. Por
que? Porque essas idéias lhes dão razões para viver.
Idéias que dão razões para viver
são aquelas idéias que fazem parte do meu corpo. Eu sei que uma idéia
faz parte do meu corpo quando eu fico feliz ao vê-la confirmada por
outra pessoa. É bom ouvir alguém dizer: “É isso mesmo”. Estou de acordo!
Quando duas pessoas confirmam uma mesma idéia- elas conhecem o mundo do
mesmo jeito- estabelece-se entre elas um pacto; tornam-se uma
comunidade, são irmãs. É assim que se formam as comunidades religiosas,
as confrarias, alguns partidos políticos, as torcidas de futebol, os
grupos de adolescentes. Mas sei também que uma idéia é parte do meu
corpo quando eu fico infeliz ao vê-la contestada. Meu corpo treme.Fico
com raiva.
Recuso-me a examinar logicamente o
argumento daquele que a contesta. Preparo-me para a batalha. Se eu me
preparo para sair, certo de que o céu está coberto de estrelas, e um
amigo me informa que estou enganado porque começou a chover, eu posso
ficar triste com o fato, mas não vou brigar para provar que o céu está
estrelado. Vou simplesmente à janela para confirmar o feito. Se for
verdade, levo o guarda-chuvas. Mas se alguém disser que é um bom negócio
derrubar as florestas para ganhar dinheiro, eu vou ficar muito bravo.
Pode até ser que seja bom negócio. Se não fosse, as madeireiras não
cortariam árvores.
Há pessoas cujos corpos são
feitos de cifrões. Seu corpo treme de felicidade ao ver a dança
ascendente dos lucros. Acontece que os cifrões não circulam no meu
sangue. Mas o meu corpo é feito com árvores e riachos. São as árvores e
os riachos que me dão felicidade. Sabem o que eu faço quando a
televisão mostra cenas de queimadas e devastações de florestas? Eu
desligo a televisão. Sei que é verdade, mas eu não quero saber.
Recuso-me. Contesto Aristóteles…Quero ignorar os fatos para que as
árvores continuem em pé. É necessário, então, enunciar o contrário do
dito pelo filósofo grego, e que é dito pela psicanálise “todos os homens
têm, naturalmente, um impulso para evitar o conhecimento”.
Esse estranho comportamento se
deve ao fato de que nossos corpos não são feitos só de carne e sangue,
eles são feitos de palavras. Os moluscos têm corpos moles. Falta-lhes um
esqueleto. Como proteção, eles produzem conchas duras dentro das quais
se fecham. Somos como os moluscos. Frágeis diante de um mundo imenso e
assustador. Tratamos, então, de nos defender: construimos conchas
duras de palavras. Conhecimento sobre o mundo? Tudo bem. Tudo é
permitido. Nada assusta. Mas ai daquele que tocar numa das palavras que
fazem parte da minha concha. Nossa concha é sagrada. Na verdade, aquele
mundo a que damos o nome de sagrado, é feito com as partes da nossa
concha de palavras. Ai daquele que tentar negar, contestar, destruir uma
dessas palavras. O corpo inteiro se mobiliza para a batalha. Ou para a
retirada…Retirada é também uma tática de guerra. Tapar os olhos, entupir
os ouvidos, recusar-se a pensar.
Pensar é muito perigoso. As
Sagradas Escrituras relatam um sonho em que aparecia uma estátua enorme
de ferro, com pés de barro. Basta um pé de barro para que a estátua
caia. O perigo do pensamento está em que ele venha a revelar que nossa
estátua de ferro tem pés de barro. Nossa concha é feita de gelatina. Se
isso acontecer já não mais conseguiremos dormir em paz.
Compreende-se, portanto, que
contrariamente ao que disse Aristóteles, a nossa tendência natural seja a
de evitar conhecimento. Os homens, naturalmente, esforçam-se por não
conhecer.
O corpo é sagrado. E sagradas são
todas as coisas que estão vitalmente ligadas a ele. Pensar uma palavra
sagrada é correr o risco de trincar a concha dura que protege nosso
corpo mole. Coisas sagradas que não devem pensadas são ídolos. Ídolos
não são para ser pensados. Ídolos são para ser adorados e usados.
Compreende-se, portanto, a tendência das pessoas religiosas de se
recusarem a pensar sobre suas idéias. Suas idéias religiosas- e portanto
os seus deuses- ficam fora do exercício do pensamento.
Mas eu não posso respeitar deuses
que me proíbam o exercício do pensamento. Um deus que não sobrevive ao
exercício da inteligência não pode ser deus. É um ídolo de pés de barro.
Mas eu amaria e respeitaria um Deus que não temesse o pensamento e que
me dissesse, como desafio: “Ouse pensar!” Eu amaria e respeitaria
um Deus que desafiasse os homens a abandonar suas conchas para se
tornarem seres alados!
Retirado da página de Rubem Alves em 25-04-2013
Disponível em: http://www.rubemalves.com.br/badulaques09.php
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